Uma menina que após ter espreitado um livro foi atrás de um
coelho branco, caiu dentro de uma árvore e entrou num
universo caótico. Era também uma vez um fidalgo dedicado dias e noites à leitura de
livros sobre cavaleiros, desencontrado da realidade, que decidiu viver aventuras, confundindo moinhos com gigantes. Porque às vezes, o
mundo sem fantasia não tem a mesma cor.
Elementos do imaginário universal, criados por Lewis Carrol e Miguel de Cervantes, Alice e Dom Quixote ultrapassam a condição de personagens literárias, transformados em fenómenos que mostram os vínculos entre a matéria dos nossos sonhos e o exterior. Alice adormece sob o intenso sol e mergulha num universo fantástico com regras próprias, tem encontros inesperados, vive situações inverosímeis e mantém conversas delirantes para mais tarde regressar à realidade. O fidalgo Alonso Quijano, amante de livros de cavalaria mitificada, resolve encarnar as suas leituras, encetando uma viagem que o levará a confundir e interpretar o mundo de acordo com os seus disparatados desejos. Derrotado, regressa à sua aldeia para, no derradeiro momento, recuperar a “lucidez”.
Alice e Alonso partilham a necessidade de viver imagens criadas e recriadas na sua mente. Essa capacidade de imaginar algo ainda só possível, improvável ou irrealizável (mas paradoxalmente sentido de maneira mais real do que própria realidade) traça os delicados contornos do território da fantasia.
Num mundo dominado pela imagem e pela informação, que lugar é o das histórias? O crítico literário Harold Bloom faz a distinção entre conhecimento e sabedoria, a literatura sábia e elíptica, como os bons provérbios que evitam declarar o seu valor, “nas narrativas elípticas do futuro espero ver o conselho indirecto e sábio que apenas a literatura imaginativa pode oferecer”.
Memória, imagem, desejo e criação
Obra feita à medida dos limites estabelecidos pelo criador, a fantasia mantém intensas relações com o sonho, a memória e o desejo, com a parte considerada atávica e irracional, mas também primordial, do ser humano. É a paisagem estranhamente familiar, aparentemente incompreensível mas cheia de significado, aberta no interior dos nossos olhos.